Folha, de Migalha

(Leaf by Niggle)

ERA uma vez um homenzinho, chamado Migalha, que precisava fazer uma longa viagem. Ele
não queria ir, de fato a ideia lhe era muito desagradável, mas não havia como escapar. Ele
sabia que algum dia teria de partir, mas não apressava os preparativos.
Migalha era pintor, embora não de muito sucesso, em parte porque tinha muitas outras
coisas para fazer. A maioria dessas coisas ele considerava aborrecidas, mas fazia-as
razoavelmente bem, quando não conseguia livrar-se delas, o que (segundo ele) era frequente
demais. As leis do seu país eram bastante rígidas. Havia também outros obstáculos. Por um
lado, às vezes ele ficava desocupado, simplesmente sem fazer nada.
Por outro lado, era
generoso, de certo modo. Aquele tipo de generosidade que mais o deixava desconfortável do
que o levava a fazer alguma coisa; e, mesmo quando fazia alguma coisa, nada o impedia de
resmungar, perder a paciência e praguejar (quase sempre para si mesmo). Mesmo assim,
acabava fazendo um bocado de serviços eventuais para seu vizinho, o sr. Paróquia, que
mancava de uma perna. Ocasionalmente ele até ajudava outras pessoas de mais longe, quando
vinham lhe pedir. De vez em quando também se lembrava da viagem e começava a embalar
algumas coisas de maneira ineficaz; nessas ocasiões não pintava muito.
Tinha alguns quadros em andamento, em sua maioria grandes e ambiciosos demais para sua
habilidade. Era aquele tipo de pintor que pinta folhas melhor do que árvores. Demorava-se
muito numa única folha, tentando captar sua forma, seu brilho, o cintilar das gotas de orvalho
nas suas bordas. Mas queria pintar uma árvore inteira, com todas as folhas no mesmo estilo, e
todas diferentes.
Havia um quadro em particular que o preocupava. Começara com uma folha ao vento e
tornou-se uma árvore; e a árvore cresceu, lançando inúmeros galhos e as mais fantásticas
raízes. Pássaros estranhos pousaram nos galhos e ele precisou lhes dar atenção. Então, em
toda a volta da Árvore e atrás dela, através das lacunas entre as folhas e os ramos, começou a
se abrir uma paisagem; e havia vislumbres de uma floresta que se estendia pela região e de
montanhas com picos nevados. Migalha perdeu o interesse pelos outros quadros; ou pregou-os
com tachas nas bordas de seu grande quadro. Logo a tela ficou tão grande que ele teve de
buscar uma escada; subia e descia ligeiro por ela, acrescentando um toque aqui e apagando um

pedaço ali. Quando as pessoas iam visitá-lo, ele aparentava gentileza, mas ficava remexendo
os lápis na escrivaninha. Ouvia o que diziam, mas no fundo pensava o tempo todo na tela
enorme, no galpão alto que fora construído para ela no jardim (num canteiro onde outrora ele
cultivava batatas).
Não conseguia livrar-se do seu coração generoso. “Eu queria ser mais firme!”, dizia às
vezes para si mesmo, querendo dizer que desejaria que os problemas dos outros não o
incomodassem. Mas por muito tempo não se deixou perturbar seriamente. “Seja como for, vou
terminar este quadro, meu quadro de verdade, antes de ter de fazer essa viagem detestável”,
ele dizia. No entanto estava começando a ver que não podia adiar a partida indefinidamente. O
quadro teria de parar de crescer e ser finalizado.
Um dia Migalha parou a certa distância do seu quadro e o observou com atenção e
desprendimento inusitados. Não conseguia saber exatamente o que achava dele, e desejou ter
um amigo que lhe dissesse o que pensar. Na verdade o quadro lhe parecia totalmente
insatisfatório, no entanto muito bonito, o único quadro realmente lindo do mundo. Naquele
momento teria gostado de ver a si mesmo entrar, dar-se um tapinha nas costas e dizer (com
óbvia sinceridade): “Absolutamente magnífico! Vejo exatamente o que você pretende.
Continue assim, e não se preocupe com mais nada! Vamos conseguir uma aposentadoria
pública para que você não precise preocupar-se.”
No entanto não havia aposentadoria pública. E uma coisa ele via: precisaria de
concentração, trabalho, trabalho duro e ininterrupto, para terminar o quadro, mesmo do
tamanho que estava. Arregaçou as mangas e começou a se concentrar. Durante vários dias
tentou não se preocupar com outras coisas. Mas chegou uma imensa onda de interrupções. Em
sua casa havia coisas para consertar; precisou sair para participar de um júri na cidade; um
amigo distante ficou doente; o sr. Paróquia ficou de cama com lumbago; e não paravam de
chegar visitas. Era primavera, e todos queriam tomar chá de graça no campo: Migalha morava
numa casinha agradável, a quilômetros da cidade. No íntimo rogava pragas contra essas
pessoas, mas não podia negar que ele mesmo as convidara tempos antes, no inverno, quando
não considerava “interrupção” ir às lojas e tomar chá com conhecidos na cidade. Tentou
endurecer o coração, mas sem sucesso. Havia muitas coisas para as quais não ousava dizer
não, quer julgasse que fossem deveres ou não; e havia coisas que era obrigado a fazer,
independentemente do que achasse. Algumas visitas insinuavam que o jardim estava meio
largado e que poderia receber a visita de um Inspetor. É claro que muito poucos sabiam do
seu quadro; e se soubessem não faria muita diferença. Duvido que o achassem muito
importante. Ouso dizer que não era mesmo um quadro muito bom, apesar de talvez ter alguns
bons trechos. A Árvore, seja como for, era curiosa. Bastante singular à sua maneira. Assim
como Migalha; mas ele também era um homenzinho muito comum e meio bobo.

Finalmente o tempo de Migalha tornou-se precioso de verdade. Seus conhecidos da cidade
distante começaram a lembrar que o homenzinho precisava fazer uma viagem desagradável, e

alguns começaram a calcular por quanto tempo, no máximo, ele poderia adiá-la. Perguntavam-
se quem ficaria com sua casa, e se o jardim seria mais bem cuidado.

Chegou o outono, com muita chuva e vento. O pintorzinho estava em seu galpão. Estava no
alto da escada, tentando captar o brilho do sol poente no pico de uma montanha nevada, que
avistara logo à esquerda da ponta frondosa de um dos galhos da Árvore. Sabia que teria de
partir logo, talvez no início do ano seguinte. Mal conseguiria terminar o quadro, e ainda por
cima só mais ou menos: havia alguns cantos em que já não teria tempo de fazer mais do que
sugerir o que desejava.
Alguém bateu na porta. “Entre!”, ele disse asperamente, e desceu da escada. Ficou parado,
revirando o pincel. Era seu vizinho Paróquia, seu único vizinho de verdade, todas as outras
pessoas moravam longe. Mesmo assim ele não gostava muito daquele homem; em parte porque
tinha problemas e precisava de ajuda com tanta frequência; e também porque não ligava para
pintura, mas era muito criterioso em relação a jardinagem. Quando Paróquia olhava para o
jardim de Migalha (o que era frequente), enxergava principalmente as ervas daninhas, e
quando olhava para os quadros de Migalha (o que era raro) só enxergava manchas verdes e
cinzentas e linhas pretas, que lhe pareciam absurdas. Não hesitava em mencionar as ervas
daninhas (um dever de vizinho), mas abstinha-se de dar qualquer opinião sobre os quadros.
Achava que estava sendo muito gentil e não percebia que, mesmo sendo gentil, não era
suficientemente gentil. Ajudar com as ervas daninhas (e talvez elogiar os quadros) seria
melhor.
– Bem, Paróquia, o que foi? – disse Migalha.
– Eu não devia interrompê-lo, eu sei – disse Paróquia (sem nem dar uma olhadela no
quadro). – Com certeza você está muito ocupado.
O próprio Migalha pretendia dizer algo parecido, mas perdera a oportunidade. Tudo o que
disse foi: – Estou.
– Mas não há ninguém mais a quem eu possa recorrer – disse Paróquia.
– Pois é – disse Migalha dando um suspiro, um daqueles suspiros que são um comentário
pessoal, mas não totalmente inaudíveis. – O que posso fazer por você?
– Faz dias que minha mulher está doente, e estou ficando preocupado – disse Paróquia. – O
vento arrancou metade das telhas do meu telhado, e está entrando água no quarto. Acho que eu
devia procurar o médico. E os pedreiros também, só que eles demoram muito para chegar.
Queria saber se você tem madeira e lona sobrando, só para eu fazer uns remendos e me

arranjar por um ou dois dias – então ele olhou para o quadro.
– Puxa vida! – disse Migalha. – Você está sem sorte. Espero que sua mulher só tenha pego
um resfriado. Vou até lá para ajudá-lo a descer a escada com a paciente.
– Muito obrigado – disse Paróquia, com certa frieza. – Mas não é resfriado, é febre. Eu não
o incomodaria por causa de um resfriado. E minha mulher já está de cama no andar de baixo.
Não posso subir e descer com bandejas, com essa minha perna. Mas vejo que você está
ocupado. Desculpe-me ter incomodado. Esperava que você tivesse um tempo para procurar
um médico, ao ver minha situação; e o pedreiro também, se você de fato não tem lona
sobrando.
– Claro – disse Migalha; porém havia outras palavras em seu coração, que no momento
estava simplesmente mole, sem nenhum sentimento de generosidade. – Eu poderia ir. Eu vou,
se você está mesmo preocupado.
– Estou preocupado, muito preocupado. Quisera eu não ser manco – disse Paróquia.
Então Migalha foi. Era complicado. Paróquia era seu vizinho, e tudo ficava muito longe.
Migalha tinha bicicleta, Paróquia não tinha e não conseguia andar de bicicleta. Paróquia tinha
uma perna aleijada, uma perna aleijada de verdade que lhe causava dor intensa; isso era
preciso lembrar, e também sua expressão amarga e sua voz chorosa. Claro, Migalha tinha um
quadro e quase não tinha tempo para terminá-lo. Mas parecia que era Paróquia que tinha de
contar com isso, não Migalha. No entanto Paróquia não contava com quadros; e Migalha não
podia mudar isso. “Com os diabos!”, ele disse para si mesmo, ao tirar a bicicleta.
Chovia e ventava, e a luz do dia estava se extinguindo. “Hoje não vou trabalhar mais!”,
pensou Migalha, e enquanto pedalava ia praguejando sozinho ou imaginando suas pinceladas
na montanha e no ramo de folhas ao lado dela, que antes ele imaginara na primavera. Seus
dedos se contorciam no guidão. Agora que saíra do galpão, enxergava exatamente o tratamento
que deveria dar àquele ramo brilhante que emoldurava a vista distante da montanha. Mas tinha
uma sensação deprimente no coração, uma espécie de medo de que nunca fosse ter a
oportunidade de tentar.
Migalha encontrou o médico e deixou um recado para o pedreiro. O escritório estava
fechado, e o pedreiro tinha ido para casa, instalar-se na frente da lareira. Migalha ficou
encharcado até os ossos e também pegou um resfriado. O médico não saiu tão prontamente
quanto Migalha. Chegou no dia seguinte, o que para ele era bem conveniente, pois àquela
altura tinha dois pacientes para tratar, em casas vizinhas. Migalha estava de cama, com febre
alta, e maravilhosos desenhos de folhas e ramos intrincados formavam-se em sua cabeça e no
teto. Não lhe trouxe consolo ficar sabendo que a sra. Paróquia estava apenas resfriada e já
sairia da cama. Virou o rosto para a parede e enterrou-se em folhas.

Ele ficou de cama por algum tempo. O vento continuou soprando. Arrancou mais muitas
telhas de Paróquia, e também algumas de Migalha: seu telhado também começou a gotejar. O

pedreiro não veio. Migalha não se importou, pelo menos por um ou dois dias. Então arrastou-
se para fora em busca de comida (Migalha não tinha esposa). Paróquia não apareceu:

apanhara chuva na perna e estava com dor; e sua mulher estava ocupada enxugando a água e
perguntando a si mesma se “aquele sr. Migalha” teria se esquecido de chamar o pedreiro. Se
visse possibilidade de pedir emprestada alguma coisa útil, teria mandado Paróquia até lá, com
ou sem perna; mas não via, de modo que Migalha foi abandonado.
Ao fim de uma semana, mais ou menos, Migalha voltou cambaleando ao galpão. Tentou
subir a escada, mas sentiu tontura. Sentou-se e contemplou o quadro, mas aquele dia não tinha
na cabeça desenhos de folhas nem visões de montanhas. Poderia ter pintado uma vista
longínqua de um deserto arenoso, mas não tinha energia.
No dia seguinte estava se sentindo bem melhor. Subiu a escada e começou a pintar. Havia
acabado de retomar a pintura quando bateram na porta.
– Droga! – disse Migalha. Mas foi como se tivesse dito “Entre!”, educadamente, pois a
porta se abriu mesmo assim. Dessa vez entrou um homem muito alto, totalmente desconhecido.
– Este é um estúdio particular – disse Migalha. – Estou ocupado. Vá embora!
– Sou Inspetor de Casas – disse o homem, erguendo o cartão de identificação para que
Migalha o visse do alto da escada.
– Ah! – ele disse.
– A casa do seu vizinho não está em condições aceitáveis – disse o Inspetor.
– Eu sei – disse Migalha. – Levei um recado aos pedreiros há muito tempo, mas eles nunca
vieram. Depois fiquei doente.
– Entendo – disse o Inspetor. – Mas agora não está doente.
– Mas não sou pedreiro. Paróquia deveria prestar queixa ao Conselho Municipal e obter
auxílio do Serviço de Emergência.
– Eles estão ocupados com estragos piores do que os daqui – disse o Inspetor. – Houve uma
enchente no vale, e muitas famílias estão desabrigadas. Devia ter ajudado seu vizinho a fazer
consertos provisórios e evitar que o reparo dos danos ficasse mais caro que o necessário. A
lei é essa. Aqui está cheio de material: lona, madeira, tinta à prova-d’água.
– Onde? – perguntou Migalha, indignado.
– Ali! – disse o Inspetor, apontando para o quadro.
– Meu quadro! – exclamou Migalha.

– Imagino que seja – disse o Inspetor. – Mas as casas vêm em primeiro lugar. A lei é essa.
– Mas não posso... – Migalha não disse mais nada, pois naquele momento entrou outro
homem, muito parecido com o Inspetor, quase um sósia: alto, todo vestido de preto.
– Venha comigo! – disse ele. – Sou o Condutor.
Migalha desceu da escada aos trambolhões. A febre parecia ter voltado e sua cabeça
flutuava; sentia frio no corpo todo.
– Condutor? Condutor? – ele disse, batendo os dentes. – Condutor do quê?
– Seu e do seu vagão – disse o homem. – O vagão foi encomendado faz muito tempo.
Finalmente chegou. Está esperando. Você vai iniciar sua viagem hoje, sabia?
– Ah, sim! – disse o Inspetor. – Você tem de viajar; mas não é bom ir embora deixando
trabalho por fazer. Mas pelo menos agora podemos usar essa lona para alguma coisa.
– Ai, minha nossa! – disse o pobre Migalha, começando a chorar. – E nem, nem está
terminado!
– Não está terminado? – disse o Condutor. – Bem, de todo modo, no que lhe diz respeito,
acabou-se. Vamos embora!
Migalha foi-se embora, muito quieto. O Condutor não lhe deu tempo de fazer as malas,
dizendo que ele devia ter feito isso antes e que iam perder o trem; então Migalha só conseguiu
agarrar uma sacola no saguão. Descobriu que ela continha apenas um estojo de tintas e um
livrinho com seus esboços: nem comida nem roupas. Acabaram pegando o trem. Migalha
estava muito cansado e com sono; mal percebia o que estava acontecendo quando o enfiaram
na sua cabine. Não se importava muito; tinha esquecido aonde deveria ir ou por que estava
indo. Quase imediatamente o trem entrou num túnel escuro.
Migalha acordou numa estação ferroviária muito grande e sombria. Um Carregador
percorria a plataforma e gritava, mas não o nome do lugar; ele gritava Migalha.
Migalha saiu depressa e se deu conta de que deixara sua sacola para trás. Virou-se, mas o
trem já tinha partido.
– Ah, você está aí! – disse o Carregador. – Por aqui! O quê? Não tem bagagem? Vai ter de
ir à Casa de Trabalho.
Migalha sentiu-se muito mal e desmaiou na plataforma. Foi colocado numa ambulância e
levado para a Enfermaria da Casa de Trabalho.
Não gostou nem um pouco do tratamento. O remédio que lhe deram era amargo. Os
funcionários e auxiliares eram hostis, silenciosos e rígidos; e ele nunca via outras pessoas,
exceto um médico muito severo, que ia vê-lo de vez em quando. Mais parecia estar na prisão

que no hospital. Ele tinha de trabalhar muito, em horários predeterminados: escavava, fazia
serviços de carpintaria e pintava tábuas brutas todas de uma cor única. Nunca o deixavam sair
ao ar livre, e todas as janelas davam para dentro. Era mantido no escuro por horas a fio, “para
pensar um pouco”, diziam. Ele perdeu a noção do tempo. Nem começou a se sentir melhor, se
isso fosse entendido como prazer em fazer alguma coisa. Não sentia prazer nenhum, nem
mesmo ao se deitar na cama.
No começo, durante mais ou menos o primeiro século (estou simplesmente dando suas
impressões), ele se preocupava vagamente com o passado. Só repetia uma coisa para si
mesmo, deitado no escuro: “Eu devia ter ido à casa do Paróquia na primeira manhã depois que
começou a ventania. Eu queria ter ido. As primeiras telhas soltas teriam sido fáceis de
consertar. Então a sra. Paróquia talvez não se tivesse resfriado. Então eu também não me teria
resfriado. Então eu teria tido uma semana a mais.” Mas com o tempo acabou esquecendo por
que queria uma semana a mais. Depois disso, só se preocupava com seus serviços no hospital.
Ele os planejava, calculando quanto tempo levaria para fazer aquela tábua parar de ranger, ou
para erguer aquela porta, ou para consertar aquela perna de mesa. Provavelmente ele se tornou
mesmo bastante útil, embora ninguém jamais lhe dissesse isso. Mas essa, é claro, não pode ter
sido a razão para terem retido o pobre homenzinho por tanto tempo. Talvez estivessem
esperando que ele melhorasse, julgando essa “melhora” por algum estranho critério médico
deles.
Seja como for, o pobre Migalha não tinha prazer na vida, não o que ele chamava de prazer.
Certamente não estava se divertindo. Mas é inegável que ele começava a ter um sentimento de
– bem, satisfação: mais pão do que geleia. Era capaz de pegar uma tarefa no momento em que
soava um sino, e prontamente deixá-la de lado no momento em que soava o outro, em ordem e
preparada para ser retomada na hora certa. Agora conseguia fazer muita coisa em um dia;
acabava com esmero os serviços pequenos. Não tinha “tempo para si” (exceto quando estava
sozinho em sua cela-dormitório), e ainda assim estava se tornando senhor do seu tempo;
começava a saber exatamente o que podia fazer com ele. Não havia sensação de pressa. Agora
estava interiormente mais tranquilo, e na hora do descanso conseguia realmente descansar.
Então, de repente, todos os seus horários foram alterados; mal o deixavam ir para a cama;
foi completamente afastado da carpintaria e só o deixaram escavando, dia após dia. Ele
aguentou bem. Muito tempo se passou até começar a tatear o fundo da mente em busca das
imprecações que praticamente esquecera. Continuou escavando, até ter a sensação de estar
com as costas quebradas, as mãos ficarem em carne viva, e ele sentir que não aguentaria mais
uma só pazada. Ninguém lhe agradeceu. Mas o médico veio e olhou para ele.
– Chega! – disse ele. – Repouso absoluto, no escuro.

Migalha estava deitado no escuro, em repouso absoluto; sem sentir nem pensar nada, não
sabia dizer se estava ali deitado há horas ou há anos. Mas agora ouvia Vozes, não eram vozes
que ele já tivesse ouvido antes. Parecia haver uma Junta Médica, ou talvez um Tribunal de
Inquérito, ali bem perto, num recinto contíguo com a porta aberta, possivelmente, embora ele
não visse nenhuma luz.
– Agora o caso Migalha – disse uma Voz, uma voz severa, mais severa que a do médico.
– Qual era o problema com ele? – disse uma Segunda Voz, que se poderia dizer mansa,
embora não suave. Era uma voz que transmitia autoridade, e soava esperançosa e triste ao
mesmo tempo. – Qual era o problema com Migalha? O coração dele estava no lugar certo.
– Sim, mas não funcionava direito – disse a Primeira Voz. – E sua cabeça não estava bem
parafusada; ele quase não pensava. Vejam o tempo que ele desperdiçou, nem mesmo se
divertindo! Nunca se preparou para a viagem. Era moderadamente próspero, no entanto
chegou aqui quase sem recursos, e teve de ser posto na ala dos indigentes. Temo que seja um
caso grave. Acho que deveria ficar mais algum tempo.
– Talvez não lhe fizesse nenhum mal – disse a Segunda Voz. – Mas, é claro, ele é apenas um
homenzinho. Nunca esteve destinado a se tornar grande; e nunca foi muito forte. Vamos ver os
Registros. Sim. Há alguns pontos favoráveis, vejam.
– Talvez – disse a Primeira Voz –; mas muito poucos que realmente resistam ao exame.
– Bem – disse a Segunda Voz –, há estes. Era um pintor nato. De categoria secundária,
claro; ainda assim, uma Folha por Migalha tem um encanto próprio. Colocava grande empenho
nas folhas, por elas mesmas. Mas nunca achou que isso o tornasse importante. Não há
anotação nos Registros de que ele pensasse, nem mesmo no seu íntimo, que isso desculparia
sua negligência para com as coisas determinadas por lei.
– Então não deveria ter negligenciado tantas delas – disse a Primeira Voz.
– Ainda assim, respondeu a muitos Chamados.
– Uma porcentagem pequena, na maioria do tipo mais fácil, e ele os considerava
Interrupções. Os Registros estão cheios dessa palavra, e também de queixas e imprecações
tolas.
– É verdade; mas é claro que para ele eram interrupções, pobre homenzinho. E há uma
coisa: ele nunca esperava nenhum Retorno, como tantos da sua espécie dizem. Há o caso
Paróquia, aquele que chegou depois. Era vizinho de Migalha, nunca moveu uma palha por ele,
e raramente deu mostras de gratidão. Mas não há anotação nos Registros de que Migalha
esperasse gratidão de Paróquia; parece que isso não lhe passava pela ideia.
– Sim, esse é um ponto – disse a Primeira Voz –; mas bem pequeno. Você vai perceber que

muitas vezes Migalha simplesmente esquecia. As coisas que tinha de fazer para Paróquia ele
apagava da memória como um inconveniente já resolvido.
– Ainda assim, há este último relatório – disse a Segunda Voz –, aquele trajeto de bicicleta
que o deixou encharcado. Isso eu quero destacar. Parece óbvio que foi um sacrifício genuíno.
Migalha percebeu que estava jogando fora a última oportunidade de terminar o quadro, e
percebeu também que Paróquia estava se preocupando desnecessariamente.
– Acho que você está exagerando – disse a Primeira Voz. – Mas a última palavra é sua.
Cabe a você, é claro, dar a melhor interpretação aos fatos. Às vezes eles a corroboram. O que
você propõe?
– Acho que agora é o caso de dar um tratamento suave – disse a Segunda Voz.
Migalha achou que nunca tinha ouvido nada tão generoso quanto aquela Voz. Tratamento
Suave soava como um monte de ricos presentes e um convite para o banquete de um Rei.
Então, de repente, Migalha sentiu vergonha. Ouvir que era considerado caso de Tratamento
Suave desarmou-o e o fez corar no escuro. Era como sermos elogiados em público quando
sabemos, e toda a plateia sabe, que o elogio não é merecido. Migalha escondeu seu rubor no
cobertor áspero.
Fez-se silêncio. Então a Primeira Voz falou com Migalha, bem de perto. – Você ouviu –
disse ela.
– Ouvi – disse Migalha.
– Bem, o que tem a dizer?
– Poderiam me dar notícias de Paróquia? – disse Migalha. – Gostaria de vê-lo outra vez.
Espero que não esteja muito doente. Podem curar a perna dele? Ela o fazia passar por maus
bocados. E por favor não se preocupem com ele e comigo. Ele foi um ótimo vizinho, e me
arranjava batatas excelentes e muito baratas, o que me poupou bastante tempo.
– É mesmo? – disse a Primeira Voz. – Fico contente em saber.
Fez-se silêncio de novo. Migalha ouviu as Vozes se afastando. – Bem, concordo – ouviu a
Primeira Voz dizer ao longe. – Que ele vá para a próxima etapa. Amanhã, se você quiser.

Ao acordar, Migalha constatou que as venezianas tinham sido abertas e que a luz do sol
entrava na sua pequena cela. Levantou-se e viu que haviam deixado roupas confortáveis para
ele, não um uniforme de hospital. Depois do café da manhã o médico tratou das suas mãos
machucadas, passando nelas um unguento que as curou imediatamente. Deu a Migalha alguns
bons conselhos e um frasco de tônico (caso ele precisasse). No meio da manhã deram a ele um
biscoito e uma taça de vinho; e depois lhe deram uma passagem.

– Agora pode ir para a estação – disse o médico. – O Carregador vai tomar conta de você.
Adeus.

Migalha esgueirou-se pela porta principal e deu umas piscadelas. O sol estava muito forte.
Esperava topar com uma cidade grande, compatível com o tamanho da estação; mas não foi
assim. Viu-se no alto de um morro verde, nu, varrido por um vento intenso e revigorante. Não
havia ninguém nas redondezas. Lá embaixo, ao pé do morro, via brilhar o telhado da estação.
Ágil, mas sem correr, caminhou morro abaixo, até a estação. O Carregador reconheceu-o
imediatamente.
– Por aqui! – disse ele, conduzindo Migalha até uma plataforma onde estava parado um
trenzinho local muito agradável: um vagão e uma pequena locomotiva, ambos muito brilhantes,
limpos e recém-pintados. Era como se fosse a primeira viagem deles. Até a ferrovia que se
estendia diante da locomotiva parecia nova: os trilhos reluziam, os coxins estavam pintados
de verde e os dormentes exalavam um delicioso cheiro de alcatrão sob a morna luz do sol. O
vagão estava vazio.
– Aonde vai este trem, Carregador? – perguntou Migalha.
– Acho que ainda não marcaram o nome – disse o Carregador. – Mas você vai encontrar
sem problemas – e ele fechou a porta.
O trem partiu imediatamente. Migalha reclinou-se no assento. A pequena locomotiva
avançou bufando por um talho profundo entre altas ribanceiras verdes, entelhado pelo céu
azul. Parecia não ter passado muito tempo quando a locomotiva apitou, os freios foram
acionados e o trem parou. Não havia estação nem tabuleta, só um lance de escada que subia
pela ribanceira verde. No alto da escada havia uma catraca numa sebe podada. Ao lado da
catraca estava a bicicleta dele; pelo menos parecia ser dele, e numa etiqueta amarela
amarrada ao guidão estava escrito Migalha, com grandes letras pretas.
Migalha abriu a catraca com um empurrão, pulou na bicicleta e desceu o morro rodando ao
sol da primavera. Logo descobriu que a trilha pela qual tinha enveredado havia desaparecido,
e a bicicleta rolava por cima de um maravilhoso gramado. Era um gramado verde e compacto,
mas ele distinguia nitidamente cada folha. Parecia lembrar-se de ter visto ou sonhado com
aquele relvado em algum lugar. As curvas da paisagem eram, de certo modo, familiares. Sim,
o terreno ia se tornando plano, como era de esperar, e agora, é claro, começava a subir de
novo. Uma grande sombra verde surgiu entre ele e o sol. Migalha olhou para cima e caiu da
bicicleta.
Diante dele estava a Árvore, sua Árvore, terminada. Se é que se podia dizer isso de uma
Árvore viva, cujas folhas se abriam, os ramos cresciam e se curvavam ao vento que tantas

vezes Migalha sentira ou adivinhara, e tantas vezes não conseguira captar. Ele fitou a árvore e
lentamente ergueu os braços e os abriu largamente.
– É um dom! – disse ele. Referia-se à sua arte, e também ao resultado; mas estava usando a
palavra bem literalmente.
Continuou olhando para a Árvore. Todas as folhas em que trabalhara estavam lá, tal como
as imaginara mas não como as fizera; havia outras que tinham apenas germinado em sua mente,
e muitas que poderiam ter germinado, se ele tivesse tido tempo. Não havia nada escrito nelas,
eram apenas folhas primorosas, no entanto estavam datadas com a clareza de um calendário.
Algumas das mais bonitas – e as mais características, os mais perfeitos exemplos do estilo de
Migalha – pareciam produzidas com a colaboração do sr. Paróquia: não havia outro modo de
dizê-lo.
Os pássaros construíam ninhos na Árvore. Pássaros surpreendentes; como cantavam! Eles
acasalavam, chocavam, criavam asas, saíam voando e cantavam, entrando na Floresta,
enquanto ele os olhava. Pois via agora que a Floresta também estava lá, esparramando-se por
todo lado e afastando-se para longe. As Montanhas reluziam ao longe.
Depois de algum tempo Migalha voltou-se para a Floresta. Não porque se cansara da
Árvore, mas porque agora ela parecia estar com toda a clareza em sua mente, estava ciente
dela e do seu crescimento, mesmo quando não a olhava. Ao se afastar, descobriu algo
estranho: a Floresta, é claro, era uma Floresta distante, mas ele podia aproximar-se dela, até
entrar nela, sem que ela perdesse aquele encanto particular. Até então nunca tinha conseguido
percorrer distâncias sem as transformar em simples arredores. Isso de fato aumentava o
atrativo das caminhadas pelo campo, porque, à medida que se caminhava, novas distâncias se
abriam. Assim, as distâncias dobravam, triplicavam, quadruplicavam, e seus encantos
dobravam, triplicavam, quadruplicavam. Podia-se avançar mais e mais, e ter um país inteiro
num jardim, ou num quadro (se preferíssemos chamá-lo assim). Podia-se avançar mais e mais,
porém talvez não para sempre. Havia as Montanhas em segundo plano. Elas se aproximavam,
muito devagar. Não pareciam pertencer ao quadro, ou só como ligação com alguma outra
coisa, um vislumbre de algo diferente através das árvores, uma etapa posterior: outro quadro.
Migalha perambulava, mas não estava apenas matando tempo. Olhava à sua volta
atentamente. A Árvore estava terminada, mas não acabada – “Exatamente o contrário de como
era”, ele pensou –, mas na Floresta havia diversas regiões não concluídas, que ainda
precisavam de trabalho e reflexão. Nada mais precisava ser alterado, nada estava errado até
aquele ponto, mas era preciso continuar até um ponto definido. Em cada caso, Migalha via
exatamente qual era o ponto.
Sentou-se embaixo de uma árvore distante, muito bonita – uma variação da Grande Árvore,

porém bem especial, ou assim seria se recebesse um pouco mais de atenção –, considerando
por onde começaria o trabalho, por onde terminaria e quanto tempo levaria. Não conseguiu
concluir o projeto.
– Claro! – disse ele. – Preciso do Paróquia. Há muita coisa a respeito de terra, plantas e
árvores que ele sabe e eu não sei. Este lugar não pode ser apenas meu parque particular.
Preciso de ajuda e conselhos, que deveria ter procurado antes.
Levantou-se e foi até o lugar pelo qual havia decidido começar o trabalho. Tirou o casaco.
Então, lá embaixo, numa pequena baixada protegida que não se via de longe, avistou um
homem que olhava ao redor meio aturdido. Apoiava-se numa pá, mas era evidente que não
sabia o que fazer. Migalha chamou-o. – Paróquia! – gritou.
Paróquia pôs a pá no ombro e subiu ao encontro dele. Ainda mancava um pouco. Não
disseram nada, só menearam a cabeça, como faziam quando se encontravam no caminho; mas
agora andavam juntos, de braços dados. Sem falar, Migalha e Paróquia concordaram
exatamente sobre onde fazer a casinha e o jardim, que pareciam necessários.
Enquanto trabalhavam juntos, ficou claro que Migalha era agora o melhor dos dois em
organizar o tempo e cumprir as tarefas. Curiosamente, era Migalha quem se concentrava mais
na construção e na jardinagem, ao passo que Paróquia muitas vezes ficava perambulando,
olhando as árvores, especialmente a Árvore.
Certo dia, enquanto Migalha plantava uma cerca viva, Paróquia estava ali perto, deitado na
grama, observando atentamente uma florzinha amarela, bonita e bem formada, que crescia no
gramado verde. Migalha pusera muitas delas entre as raízes de sua Árvore, havia bastante
tempo. De repente Paróquia ergueu os olhos; seu rosto reluzia ao sol e ele estava sorrindo.
– É maravilhoso! – disse ele. – Na verdade não era para eu estar aqui. Obrigado por me
recomendar.
– Bobagem – disse Migalha. – Não me lembro do que disse, mas de qualquer modo não foi
o bastante.
– Ah, foi sim – disse Paróquia. – Assim eu saí muito antes. Aquela Segunda Voz, como
você sabe, tinha me mandado para cá; disse que você tinha pedido para me ver. Devo isso a
você.
– Não. Você deve à Segunda Voz – disse Migalha. – Nós dois devemos.
Continuaram morando e trabalhando juntos, não sei por quanto tempo. Não há como negar
que no começo discordavam de vez em quando, especialmente quando se cansavam. Pois no
começo às vezes se cansavam. Descobriram que ambos haviam recebido tônicos. Os frascos
tinham rótulos iguais: Tomar algumas gotas com água da Fonte, antes de descansar.

Encontraram a Fonte no coração da Floresta; só uma vez, havia muito tempo, Migalha a
imaginara, porém nunca a tinha desenhado. Agora percebia que era a fonte do lago que reluzia
ao longe e alimentava tudo o que crescia na região. As poucas gotas tornavam a água
adstringente, meio amarga, mas revigorante; e desanuviavam a cabeça. Depois de beber eles
descansavam sozinhos; então levantavam-se de novo e tudo prosseguia alegremente. Nessas
horas Migalha pensava em flores e plantas lindas e novas, e Paróquia sempre sabia
exatamente como plantá-las e onde cresceriam melhor. Muito antes que os tônicos acabassem
deixaram de precisar deles. Paróquia já não mancava.
À medida que o trabalho chegava ao fim eles se permitiam cada vez mais tempo para
caminhar, olhando as árvores, as flores, as luzes e formas, e o panorama da região. Às vezes
cantavam juntos, mas Migalha constatou que começava a ser cada vez mais frequente ele
voltar os olhos para as Montanhas.
Chegou um tempo em que a casa na baixada, o jardim, a grama, a floresta, o lago e toda a
região estavam quase completos, a seu próprio modo. A Grande Árvore estava em plena
floração.
– Vamos terminar hoje à tardinha – disse Paróquia um dia. – Depois disso vamos fazer uma
longa caminhada.
Partiram no dia seguinte e caminharam através das distâncias até chegarem à Beirada. Não
era visível, é claro. Não havia linha, nem cerca, nem muro; mas sabiam que haviam atingido a
margem daquela região. Viram um homem que parecia um pastor de ovelhas; caminhava na
direção deles, descendo as encostas gramadas que levavam às Montanhas.
– Querem um guia? – perguntou ele. – Querem prosseguir?
Por um momento uma sombra caiu entre Migalha e Paróquia, pois Migalha sabia que agora
queria prosseguir, e (de certo modo) deveria prosseguir; mas Paróquia não queria e ainda não
estava pronto para ir.
– Preciso esperar minha mulher – disse Paróquia a Migalha. – Ela se sentiria sozinha. Eu
tinha entendido que a mandariam atrás de mim, em algum momento, quando estivesse
preparada e quando eu tivesse preparado as coisas para ela. Agora a casa está terminada, do
melhor jeito que conseguimos; mas eu gostaria de mostrá-la para minha mulher. Acho que ela
vai ser capaz de melhorá-la, deixá-la mais aconchegante. Espero que ela goste deste lugar,
também – e ele se voltou para o pastor. – Você é guia? – perguntou. – Pode me dizer o nome
deste lugar?
– Não sabe? – disse o homem. – É a Terra de Migalha. É o Quadro de Migalha, ou a maior
parte: uma pequena parte agora é o Jardim de Paróquia.

– Quadro de Migalha! – disse Paróquia, espantado. – Você imaginou tudo isto, Migalha?
Nunca soube que você era tão esperto. Por que não me contou?
– Ele tentou lhe dizer há muito tempo – disse o homem –, mas você não olharia. Na época
ele só tinha tela e tinta, que você queria usar para consertar seu telhado. Era o que você e sua
mulher chamavam de Bobagem de Migalha, ou Aqueles Borrões.
– Mas naquela época não era assim, não era real – disse Paróquia.
– Não, naquela época era só um vislumbre – disse o homem –; mas você poderia ter
entendido o vislumbre, se achasse que valia a pena tentar.
– Não lhe dei muita oportunidade – disse Migalha. – Nunca tentei explicar. Eu o chamava
de Velho Cavoucador de Terra. Mas o que importa? Agora moramos e trabalhamos juntos. As
coisas podiam ter sido diferentes, mas não podiam ter sido melhores. Ainda assim, acho que
vou ter de prosseguir. Decerto vamos nos encontrar de novo, assim espero; deve haver muito
mais coisas que podemos fazer juntos. Adeus! – ele apertou a mão de Paróquia calorosamente,
pareceu-lhe uma mão boa, firme, honesta. Voltou-se para trás por um momento. As flores da
Grande Árvore resplandeciam como uma chama. Todos os pássaros voavam e cantavam.
Então ele sorriu, meneou a cabeça para Paróquia, e foi-se com o pastor.
Ia aprender sobre ovelhas, sobre as altas pastagens, olharia para um céu mais amplo,
caminharia mais e mais rumo às Montanhas, sempre subindo. Mais adiante não consigo
imaginar o que foi feito dele. Mesmo o pequeno Migalha em sua antiga casa era capaz de
vislumbrar as Montanhas ao longe, e elas entraram nas bordas do quadro dele; mas como elas
são de verdade e o que existe para além delas só quem as escalou é capaz de dizer.

– Acho que ele era um homenzinho bobo – disse o Conselheiro Tompkins. – Inútil, na
verdade; de nenhuma serventia para a Sociedade.
– Ah, não sei – disse Atkins, que não era ninguém importante, apenas um mestre-escola. –
Não tenho tanta certeza; depende do que você entende por serventia.
– Sem serventia prática nem econômica – disse Tompkins. – Ouso dizer que ele poderia ter
se tornado algum tipo de engrenagem aproveitável, se vocês, mestres-escola, entendessem do
seu ofício. Mas não entendem, e assim acabamos tendo gente inútil como ele. Se eu
governasse este país, daria a ele e aos de sua laia algum serviço para o qual fossem
adequados, como lavar pratos numa cozinha comunitária ou coisa parecida, e cuidaria para
que trabalhassem direito. Ou os descartaria. Eu deveria tê-lo recolhido há muito tempo.
– Recolhido? Quer dizer que o teria feito viajar antes do tempo dele?
– Sim, já que você faz questão de usar essa velha expressão sem sentido. Empurrá-lo pelo

túnel para o grande Monte de Entulho, é isso que quero dizer.
– Então você acha que o quadro não vale nada, que não vale a pena preservá-lo, aprimorá-
lo ou até aproveitá-lo?
– É claro que pintura tem utilidade – disse Tompkins. – Mas não dava para usar o quadro
dele. Há muitas oportunidades para jovens arrojados que não têm medo de novas ideias e
novos métodos. Mas não para essas bobagens antiquadas. Devaneios privados. Ele não seria
capaz de desenhar um cartaz eloquente para salvar sua vida. Sempre mexendo com folhas e
flores. Certa vez perguntei-lhe por quê. Ele disse que as achava bonitas! Dá para acreditar?
Ele disse bonitas! “O quê, órgãos digestivos e genitais de plantas?”, eu lhe disse; e ele não
deu resposta. Bobo indolente.
– Indolente – suspirou Atkins. – É, pobre homenzinho, nunca terminou nada. Tudo bem, as
telas dele tiveram “melhor uso” desde que ele se foi. Mas não sei, Tompkins. Você se lembra
daquela grande, a que usaram para consertar os estragos da casa vizinha à dele, depois das
ventanias e das enchentes? Encontrei um pedaço dela rasgado, jogado num campo. Estava
estragado, mas reconhecível: um pico de montanha e um ramo de folhas. Não consigo tirá-lo
da mente.
– Tirá-lo do quê? – disse Tompkins.
– De quem vocês dois estão falando? – disse Perkins, intervindo em prol da paz. Atkins
estava vermelho.
– Não vale a pena repetir o nome – disse Tompkins. – Nem sei por que estamos falando
dele. Ele não morava na cidade.
– Não – disse Atkins –, mas mesmo assim você estava de olho na casa dele. Por isso ia
visitá-lo e ficava zombando dele enquanto bebia seu chá. Bem, agora você conseguiu a casa
dele, e a da cidade, de modo que não precisa deixar de pronunciar o nome dele. Se quer saber,
Perkins, estávamos falando de Migalha.
– Ah, coitado do pequeno Migalha! – disse Perkins. – Nem sabia que ele pintava.
Provavelmente foi a última vez que o nome de Migalha foi mencionado numa conversa. No
entanto, Atkins guardou o pedaço que sobrou. A maior parte se esfarelou, mas uma bela folha
ficou intacta. Atkins mandou emoldurá-la. Mais tarde legou-a ao Museu Municipal, e por
muito tempo “Folha: de Migalha” ficou pendurada num nicho, e poucos olhos a notaram. Mas
por fim o Museu foi destruído por um incêndio, e a folha, e Migalha, foram inteiramente
esquecidos na sua antiga terra.
– Está mostrando que é muito útil, de fato – disse a Segunda Voz. – Para férias e repouso. É

esplêndida para convalescença; e não apenas isso, para muitos é a melhor introdução às
Montanhas. Faz milagres em alguns casos. Tenho mandado cada vez mais gente para lá.
Raramente precisam voltar.
– É mesmo – disse a Primeira Voz. – Acho que vamos ter de dar um nome à região. O que
propõe?
– O Carregador resolveu isso há algum tempo – disse a Segunda Voz. – Trem para
Paróquia do Migalha na plataforma: ele grita isso há muito tempo. Paróquia do Migalha.
Mandei uma mensagem aos dois para lhes contar.
– O que disseram?
– Os dois riram. Riram – as Montanhas ecoaram as risadas!
Folha, de Migalha Folha, de Migalha Reviewed by Luana Beatriz on novembro 02, 2017 Rating: 5

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